domingo, 12 de junho de 2011

Memórias imaginadas - Introdução

Introdução

Imagens urbanas

Se Maurília tivesse permanecido como antes, e que, de qualquer modo, a metrópole tem este atrativo adicional – que mediante o que se tornou pode-se recordar com saudades daquilo que foi.
Ítalo Calvino

O ar carregado de fumaça e barulhos do trânsito, carros, muitos carros, homens e mulheres em passos rápidos lotando as calçadas e invadindo as ruas, ambulantes, mendigos, policiais, outdoors, grandes avenidas que já não parecem o suficiente para comportar esse frenesi metropolitano. Esta poderia ser a descrição de inúmeras grandes cidades atuais, mas estou me referindo ao centro da capital fluminense. Porém, quem o conhece, o vivencia no fatigar cotidiano, entende seu charme, objetaria com veemência tal acusação de falta de particularidade ou identidade. Afinal, mesmo nesse adiantado processo de integração espaço-temporal da pós-modernidade - ou modernidade tardia, quem poderá dizer? - o local ainda guarda suas memórias, seus gestos, suas imagens.
Por cidade não se deve entender apenas um traçado regular dentro de espaço, uma distribuição ordenada de funções públicas e privadas, um conjunto de edifícios representativos e utilitários. Tanto quanto o espaço arquitetônico, com o qual se identifica, o espaço urbano tem os seus interiores. (...) O espaço figurativo, como demonstrou muito bem Francastel, não é feito apenas daquilo que se vê, mas de infinitas coisas que se sabem e se lembram, de notícias. Até mesmo quando pinta uma paisagem natural, um pintor está pintando, na realidade, um espaço complementar do próprio espaço urbano. (ARGAN, 2005)
Como demonstra tão bem Sandra Pasavento ao falar da predominância do simbólico sobre o real na construção de um imaginário brasileiro, ou mais especificamente do carioca, o centro do Rio de Janeiro por ter sido capital da colônia, sede da corte e depois capital da república, carrega projeções de ideais almejados no país. Ou seja, concentra marcos de referencia das grandes mudanças realizadas, principalmente sob a forma de elementos individualizantes - monumentos, tipo de construção arquitetônica, traçado urbano, paisagem, costumes e procederes. As reformas urbanas pensadas sobre o núcleo histórico, religioso e político que costuma ser o centro de uma
urbe, quase sempre deixam camadas de outras eras, e no centro do Rio estas podem ser vistas com facilidade. Andando por suas ruas se vê grandes avenidas lotadas cortadas por ruas estreitas cortadas por ruelas ainda menores onde poucos carros passam. Se nas maiores avenidas impera uma arquitetura marcada pelo geometrismo (como se vê bem na Av. Presidente Vargas), nas ruelas principalmente encontram-se sobrados (aqui considerados antigos, do fim do XIX e início do XX) alguns muito bem conservados outros tantos caindo aos pedaços. Várias igrejas, jardins e prédios públicos de diferentes séculos igualmente conseguiram passar incólumes a tantas mudanças, espalhados entre as ruelas e avenidas, contudo, as camadas da cidade não são visíveis apenas na arquitetura, fazem parte também os gestos, personagens e mesmo a compreensão simbólica do espaço pelos habitantes que entendem as áreas como novas ou velhas.
Pensando assim se chega ao Morro da Conceição, um daqueles interiores urbanos, como que escondido por montes de concreto, um dos lugares onde a incongruência das camadas urbanas é mais visível, a noção de outras eras é bastante vivenciada pelos freqüentadores desse espaço. Como uma memória viva da cidade antes de ser remodelada no início do século XX, a área guarda a forma de outras eras, lembranças de sua construção. Outrora um dos quatros morros a delimitar a nascente vila, subsiste com suas ruelas lusitanas, seu diferente casario que conta três séculos de habitações, e com um marco tão forte quanto a pedra do sal, rocha em que, até fins do século XIX, batiam as águas da Bahia de Guanabara, por onde desembarcavam escravos negros vindos da África. Portanto, especialmente por se manter a margem das renovações urbanas, esse recôndito lugar permite vislumbrar várias faces da vivência da cidade, povoadas por algumas das presenças mais marcantes na construção da identidade carioca; o militar, padres, o imigrante português, a baiana, o sambista, o escravo, o nordestino.
Essas presenças são alguns dos componentes da particular dinâmica histórica carioca, “como imaginário engendrado por agentes sociais visando a consolidar o continente e o país como unidades geopolíticas” (CONDURU, 2007), que tece as formas da cidade. Nossa forma de pensar e agir na metrópole é mediada justamente por essas formas materiais e imateriais, desenhistas da silhueta de nossas paisagens, tradutoras das ideologias que representam o status quo urbano, que diferenciam uma cidade no interior da Austrália, no alto dos Andes, do litoral do Rio de Janeiro. Mesmo que forças homogeneizantes da globalização, como a indústria cultural, sejam extremamente influentes nas transformações locais, o lugar não deixa de ter seu próprio devir. O espaço guarda sua vivência própria, sua maneira de responder aos inúmeros choques que lhe aparecem. Assim, cada cidade constrói seu imaginário, sua ficção de identidade, que por vezes é tão potente quanto o real, ou até mais forte no caso do Rio de Janeiro segundo Pesavento, para quem ali vive.
Na tentativa de instigar uma reflexão sobre a própria construção e estruturação do Rio de Janeiro, não apenas como a cidade que se vê nas fotos, mas num nível mais profundo, enquanto realidade imaginária, nos propusemos uma série de intervenções artísticas no interior urbano citado. Pinturas de escravos, vendedores, sambistas, em tamanho real, sobre as paredes das ruas, produziriam uma mistura de cotidianos de diferentes temporalidades, fazendo indivíduos de várias épocas habitarem o mesmo espaço dos que hoje caminham. Afinal, como postulava fenomenologicamente Merleau-Ponty, para quem interroga, seja filosófica ou historicamente, um evento está sempre a acontecer e assim nos tornamos contemporâneos do passado enquanto o imaginamos.

“Tematizar sobre a arte urbana é pensar sobre a vida social aproximando-se de um certo modo pelo qual as pessoas se produzem e são produzidas no âmbito da ordem simbólica. É pensar sobre cultura urbana” (Vera Pallamin, Arte urbana, pg 24)

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